Hoje, ouvi alguém dizendo alguma coisa sobre mudanças climáticas e de como era importante a minha participação mais ativa nessas questões. Avaliei, concordei e toquei a vida em frente, sem nada fazer a respeito. Acho que você deve estar pensando que sou inconsequente por tomar essa atitude, por simplesmente seguir em frente. Peço que não me julgue sem saber os reais motivos.
Pense você, se alguém consegue avaliar com clareza, qualquer assunto que seja, quando tem fome? Pois, eu não consigo! Tenho tantas fomes que não me sobra tempo para avaliar nenhuma outra questão. Existe algo mais importante do que aplacar a fome, seja ela qual for? Acredito que não.
Muitas foram as tentativas de matar a minha fome. Ouvi eles dizerem que viriam novos tempos, novos olhares, novos cuidados. Falaram em tempos de amor e esperança. Mas de nada adiantou. A fome ainda habita meu corpo. Ela me consome de forma, aos poucos de forma endêmica.
Você já se perguntou quantas fomes alguém pode sentir? Respondo: muitas. Vou te contar as que me assolam, então você me diz se concorda comigo ou não. Se não concordar, vou entender, porque você também deve estar com o juízo corrompido por alguma dessas fomes.
Bem, vou te contar uma coisa, achei que seria mais fácil listar minhas fomes de forma legítima e inteligível, pois muitas delas são imateriais e intangíveis. Só quem sente entende, mas vou tentar descrevê-las com clareza. Começarei pelo básico: sou pobre, e como todo pobre, mesmo que tentem me convencer do contrário, vivo em condições de miséria. Abro um parêntese para uma breve reflexão, para bem da verdade, nunca entendi muito bem porque sou pobre se tenho as burras cheias desde que nasci, mas enfim, continuemos.
Vamos ao que interessa, em primeiro lugar sinto fome de comida, essa fome acho você conhece. É fácil imaginar, não é? Afirmo: não é não. Imagine uma fome profunda, que dói na pouca carne que temos colada aos ossos. Imaginou? Essa é a fome do pobre. É aquela que faz com que você perca o rumo, o prumo e muitas vezes o juízo. É aquela fome que impede você de pensar além do agora. Sim, porque eu tenho fome agora, não amanhã. Parte de mim se revira na cama, a barriga se contorce, o sono não vem. A fome me atormenta, me corrói as entranhas e está alojada em mim há tanto tempo que é tarefa difícil combatê-la. Só faz aumentar mais e mais a cada dia. Pensando bem, acho que, como já nasci assim, com fome, minha fraqueza vem daí: sofro de falta de nutrientes essenciais, necessários para fazer com que eu me mantenha em pé pelas próprias pernas.
Explicada a fome que todos conhecem, mas nem todos sentem, vou tentar explicar minhas outras fomes. Você deve estar achando engraçado “outras fomes”, não é? Quando descobrir que talvez, você também sofra de alguma fome, a piada pode perder a graça.
Existe uma fome que me persegue de perto, eu a chamo de fome de identidade, sim, você não sabia que existe uma fome desse tipo? Pois existe. Tenho fome de saber. O que me representa? O que sou de fato? De onde vim? Se sou tantos, como posso ser apenas um? Como posso dialogar comigo mesmo se falo tantos dialetos? Alguns dizem que sou multicultural, multifacetado, plural, eu concordo, mas, então, de onde vem essa minha fome de algo que me represente se eu mesmo preciso ser representante de todos?
Acredito que quando me arrancaram tudo, roubaram-me muito além do material, extraíram-me a essência. Quando me conheceram, disseram que eu era selvagem, impuro. Precisava aprender a ser mais servil. Eu era diferente demais, vermelho demais, selvagem demais. Calaram-me com suas rezas. Dizimaram-me com seus facões. Logo depois, eu, que era dono de uma breve existência, transformei-me de vermelho em branco e logo mesclei-me ao negro. As correntes e os chicotes proibiram as minhas crenças, os meus cantos, os meus saberes. Mais de trezentos anos se passaram até que o sol da liberdade pousasse seus raios fúlgidos sobre mim e me desse o aval para sentir fome por conta própria.
Lembro-me que a certa altura eu era, muito pouco vermelho, um pouco branco e muito negro e foi então que ganhei uma nova cor. O amarelo chegou trazendo o Buda que se fundiu em comunhão com Jesus Cristo e os Orixás, enquanto Deus era batizado pelas águas límpidas de Iara e Iemanjá. Entendeu minha dúvida agora? Como posso saciar essa minha fome identitária se em tudo creio, mas em nada acredito?
Se você acha que as minhas fomes acabaram, está muito enganado. Minha outra fome, e essa me persegue desde sempre, é a fome de ser. Quero ser alguém no mundo. Quero ser visto como igual. Quero ser ouvido, mas não com complacência e sim com uma escuta genuinamente atenta. Quero ser relevante. Quem sabe, se eu for mais Americano do que Latino, possa ser ouvido, respeitado, igualado. Acho que se é para ser, quero ser dominante, cansei de ser dominado.
Vejo com espanto, meus vizinhos batendo no peito, orgulhosos por serem mais Latinos do que Americanos. Não entendo, somos vizinhos de porta e eu, ao contrário deles, me sinto uma ilha, vagando em meio ao oceano turbulento da negação. Sou filho único de uma pátria amada. Sinto que preciso ser alguém com voz própria, mas, me pergunto, como encontrar a minha voz se nasci com a boca amordaçada e não tive mãe gentil que me ensinasse a dizer um sonoro não quando necessário e que me mostrasse que sou amado e idolatrado. Sigo em frente, mesmo sem forças, sentindo-me desolado e isolado.
Tenho muito mais fomes, mas me faltam forças para descrevê-las. Ouço alguém chamar: Surge um fulano qualquer que diz aos berros, do alto de um palanque, que vai acabar com a minha fome, ou com a minha violência, e eu, cansado de sentir fome, cansado de ser violento, aplaudo e o sigo, cego como um remador guiado pelos gritos ritmados do timoneiro e, como deve ser, sem questionar, sigo remando, sempre em frente. Afinal, me privo de pensar porque sei que a fome turva-me o juízo.
Você continua pensando que sou inconsequente por não fazer nada a respeito das questões climáticas e ambientais? Acha que sou louco por simplesmente me calar? Entenda que tenho fome desde que nasci e quem tem fome tem uma necessidade urgente de sobreviver, e quem tem urgência não tem tempo de pensar em nada além do hoje, porque a fome não espera até amanhã. Do amanhã, pouco sei. Simplesmente me calo e sigo em frente, afinal, tenho trabalho demais pensando na minha fome de hoje.
O quê? Ah, sim, desculpe, estou aqui falando, falando e falando e acabei esquecendo de me apresentar. Muito prazer, meu nome é Araruna Silva Suzuki Rossi Bauer… mas pode me chamar de Brasil. Bem, já vou indo. Espero encontrá-lo em breve, espero estar com a barriga mais cheia, e a cabeça mais em ordem, assim poderemos discutir, assim como meus vizinhos do outro lado da rua, com mais calma essas questões energéticas, climáticas, ambientais e tudo o mais.
Valeria Pagani
muito intrigante esse conto, vi em algumas partes o hino brasileiro. Foi de propósito? Se baseou nele para escrever o conto?