1
No alto dos seus noventa anos, Doranice sentia-se cansada como nunca, fora acometida por um cansaço, que, agora, vinha da alma.
Ao completar setenta anos a artrite retorceu o seu prazer de tocar, o dedilhar das teclas tornou-se um tormento, e assim, com seu prazer contorcido foi ficando engasgada, engasgada com todo aquele Bach e aquele Mozart, sentia-se inchada, cheia de Chopin, e por mais que tentasse não havia meio de expurgá-los. Aos poucos, se deu conta, que precisava impregnar, alguém além dela, com todo aquele Beethoven, decidiu então que iria lecionar. Seu plano era simples, iria lecionar dentro do seu apartamento, a família achou absurdo, não iria dar conta, ela não precisava do dinheiro, já tinha uma boa pensão, mas seu piano, que assim como ela, andava silencioso, precisava cuspir notas e vomitar acordes.
Aos poucos sua vida foi ganhando pequenos risos, ajustes de posturas, conversas miúdas que a deixavam a par do novo no mundo que fervilhava fora do seu suntuoso apartamento.
Por mais de vinte anos sua vida se fez repleta de música, mesmo que tocada por dedinhos com pouca habilidade. Doranice acreditava que todos os seus alunos alcançariam o estrelato, podia vê-los iluminados em um Teatro Municipal com ingressos esgotados.
Fazia de seus alunos uma extensão de si mesma, durante as aulas ela tinha mãos novamente, e por serem suas precisavam ser precisas, perfeitas. Não se sabe ao certo os alunos, mas Doranice aproveitava cada segundo daquelas aulas, os pequenos preenchiam não só seu tempo, mas também a sua alma.
Naquele dia, repleto de nuvens pintadas de cinza, olhou para o piano jogado no canto da sala, o coitado andava triste novamente, o pó fazia morada sobre a base de madeira, suas teclas de ébano e marfim inertes, caladas pela situação. Após instaurado esse tal de Novo Normal, o coitado do piano não sentia mais o apalpar das pequenas mãozinhas, não via mais sorrisos ao acertar o acorde, o banquinho não sustentava corpinhos eretos ajeitados a perfeição, e Doranice, por sua vez, não tinha mais abraços, e como faziam falta aqueles bracinhos em volta do seu pequeno corpo curvado, aqueles beijinhos em sua pele marcada pelo tempo, nada mais de dedinhos buscando aquela tecla que casava com a partitura. Mas cadê? Nesses Novo Normal lhe restava apenas o som do arrastar dos chinelos, o barulho seco da bengala contra o chão de madeira de lei que como ela havia perdido o brilho, a imensidão dos noventa cento e vinte quadrados e tudo aquilo que acontecia lá fora a faziam pensar, se queria continuar a fazer parte daquele mundo agora silencioso.
Luzia recebeu o convite, seria responsável por cuidar de uma senhora idosa, os filhos, preocupados, precisavam de alguém para cuidar dela em tempo integral, sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia, garantiram que ganharia bem para compensar o esforço.
Com o passar do tempo, Luzia começava a pagar o preço de sua escolha, privada da família e amigos, sentia-se quase que acorrentada a Doranice, que por sua vez parecia não fazer muita questão da presença de Luzia, sempre tinha se virado sozinha, não entendia aquela frescura agora de ter uma sombra ao seu lado.
Luzia era quem recebia as compras que os filhos e netos de Doranice amontoavam do lado de fora da porta, limpava item por item, tudo o que vinha do Mundo Exterior, lavava com sabão ou borrifado a exaustão com álcool, o cheiro de álcool impregnava o ar, não podia arriscar, com Dona Doranice naquela idade, imagina se ela pega essa tal de Covid. “Deus me livre!”.
Doranice por sua vez, parecia alheia a toda a situação, enterrada em suas perdas, recusava-se a trocar mais do que cinco palavras diárias com aquela mulher estranha que fora implantada por seus filhos dentro de sua própria casa.
A recíproca era verdadeira, Luzia, por sua vez, também não queria estar ali, queria mesmo era estar no baile da comunidade, queria estar nos braços de Rodrigo, queria estar no bar do Juca, mas não ali, não com aquela senhora, tentava pensar no final da reta, quando aquilo tudo acabasse o dinheiro lhe garantiria ingressos de bailes fora da comunidade, cervejas em um bar melhor que o do Juca e muitos beijos de Rodrigo no barraco comprado para o casamento, então fazia seu trabalho direito, tinha paciência redobrada.
A pandemia não dava sinais de trégua, mais de dois meses de confinamento haviam se passado, a televisão dizia mais de mil mortos por dia, assim estavam, uma desinfectando e a outra pensando, uma cozinhando e a outra resmungando, uma limpando e a outra dormindo, cada uma em seu mundo, e essas duas realidades ficavam dentro de um mesmo universo que havia se tornado incomum, presas dentro daquele pequeno grande apartamento só queriam saber dos alunos perdidos, das cervejas não tomadas, dos acordes calados, dos beijos cessados, suas perdas pareciam maiores que a de qualquer outra pessoa, pois eram só delas, doíam na pele curtida de sol de uma e nas rugas pálidas da outra.
A agonia individual era tamanha que se esqueceram que não estavam sós, não se deram conta de quão interessantes eram e que renderiam boas horas de conversa, trancadas, cada uma em uma mente, não se deixavam conhecer, faziam seus papéis naquele pequeno mundo de paredes brancas que parecia se fechar mais e mais a cada dia.
Uma pena, eram as duas mulheres mais cheias de histórias daquele apartamento, cheias de saberes e dizeres que só a idade traz, duas pequenas senhoras de grandes feitos, mas não queriam saber, não importava, só queriam que o Novo Normal voltasse a ser, simplesmente normal.
Se Doranice quisesse saber, Luzia teria contado para ela muitas histórias sobre sua bisavó, que era escrava e tinha conseguido fugir com um negro que era príncipe lá na terra de onde veio, mas Doranice não perguntou, Luzia, também não perguntou e Doranice não contou que havia tocado piano na Europa para uma plateia de mais de mil pessoas e tudo isso em uma época em que mulheres não podiam nem andar sozinhas por aí. Elas não se importavam, ninguém queria ouvir, mas ouviam a TV que dizia agora “Mais de dois mil mortos por dia”.
E assim se passavam os dias, as duas cheias de histórias, guardadas para quem quisesse ouvir, acorrentadas uma a outra, uma limpando a outra dormindo, uma cozinhando, as duas comendo, até que um dia, Luzia quis saber.
2
— Dona Doranice, a senhora toca piano há muito tempo?
— Uhum!
Doranice só queria silêncio para poder mergulhar em sua xícara enquanto afogava seu pão com queijo no café.
— Acho tão bonito gente que sabe tocar. Deve ser muito difícil.
— Uhum!
O pão de Doranice resolveu descansar no prato e o café se sentiu mal tomado, ouviu-se um suspiro forçado e Doranice saiu da cozinha com seus passinhos curtos, a bengala ecoava a raiva.
Luzia precisava passar o tempo, com o fim dos créditos do celular veio a incontrolável necessidade de falar com alguém. Temia pela própria sanidade. Foi então que a semente da ideia fixa surgiu, iria fazer Dona Doranice falar, a velha também precisava falar, não era coisa boa ficar tanto tempo quieta.
— A senhora sempre foi professora?
— Não.
O espanador de Luzia agitou-se no ar, pequenos pulinhos silenciosos denunciaram a vitória, Dona Doranice já tinha mudado de meses de "Uhum" para um sonoro "Não", estava no caminho certo. Luzia acreditava que desde pequena sua maior habilidade era a de saber como puxar assunto, devem ter sido todos aqueles anos andando por horas de ônibus-trem-metrô-ônibus ao amanhecer e ônibus-metrô-trem-ônibus ao anoitecer, essa viagem diária durava duas horas e meia, eram cinco horas que usava, sabiamente, para se inteirar da vida alheia, tinha ouvido tantas histórias que dariam mais livros do que ela já tinha lido na vida, ela lia muito devagar, falta de tempo e costume.
Doranice, como boa senhora de classe média conservadora, só assistia à Rede Globo já para Luzia a televisão não falava mais o seu idioma, gostava da Record, todas aquelas novelas lindas, todas com histórias reais tiradas da bíblia.
Deitada em sua cama na penumbra do quarto fechado, Doranice não se conformava, agora aquela mulher estava tentando puxar assunto, era só o que faltava! Ia falar com o filho, não queria mais aquele empiastro assombrando a sua casa. Envelhecer não é fácil, as pessoas querem escolher por você, fazer por você, avaliar por você, falar por você, e você não tem mais querer, nem saber, nem voz, como se todo o conhecimento adquirido e cuidadosamente catalogado ao longo da vida fosse sendo inutilizado ano após ano. Seu corpo não era mais o mesmo, mas a mente ainda fervilhava dentro dela, lúcida e cheia de ideias.
Doranice passou a mão no telefone, falou com um dos filhos, não queria mais Luzia zanzando por aí, fazendo barulho pela casa, azucrinando com perguntas, o filho lhe pediu paciência, essa situação não iria durar para sempre, Luzia era de confiança e ele se sentia mais seguro assim, ela não contestou, tinha aprendido que não era elegante mulher discutir com homem, o filho era professor de faculdade, homem tão inteligente deveria saber o que era melhor para ela, mas isso não garantia sua felicidade, virou de lado na cama, rendida, cochilou.
Enquanto a paz reinava no quarto de Doranice, no restante da casa quem imperava era o caos e Luzia regia sua orquestra de desconcerto, fones de ouvidos ligados ao seu único amigo, o celular, cantava, sem noção do volume da própria voz enquanto a panela de pressão gritava a plenos pulmões na cozinha, o aspirador vociferava enquanto engolia tudo que encontrava pela frente, janelas abertas de par em par para deixar o mundo entrar, mas quem disse que ele entrava? O mundo andava calado, fechado, isolado, estava como as cadeiras da sala de jantar, de pernas para o ar, Luzia desligou o aspirador, cotovelos ajeitados no beiral da janela, respirou fundo o ar leve encheu seus pulmões, podia ver até onde antes só se via uma faixa cinzenta de poluição, céu claro, o vento frio anunciava a chegada do inverno, não havia carros nas ruas, nem gente, nem conversas, nem ônibus se via passar, Luzia, que a falta de tempo não deixava ser do tipo contemplativa, se permitiu estar ali, igual ao mundo, parada, pensou por um instante que o mundo tinha parado só para que ela pudesse olhar em detalhes tudo que havia lá fora, nunca tinha reparado como aquele mundo, que via da janela de Doranice, era diferente do mundo que a pequena janela de alumínio de sua casa mostrava, era um universo asfaltado, coberto de árvores e de casas bem acabadas, podia ver grandes quintais, mas nada de gente, nada de vida, o cheiro de queimado invadiu os pulmões de Luzia, correu para a cozinha, quem sabe ainda dava tempo de salvar o danado do feijão.
Desligou o fogo, panela na mão, água fria para poder abrir mais rápido, tirou os grãos da parte de cima, cheirou, dava para salvar, agora só precisava fazer o arroz, a salada pronta na geladeira dava muito bem para as duas, frigideira na boca do fogão, um bifinho de frango e pronto, em meia hora o almoço estava pronto. ”Mas por onde anda Doranice?” — Pensou Luzia, lembrando que não estava só.
Bateu de leve na porta, mas nada de resposta, ao abrir viu Doranice esticada na cama, ronco alto, falou baixinho da porta mesmo. “Dona Doranice, vamos acordar, já está na hora do almoço!” — mas nada.
Sorrateira, esticou a mão e com delicadeza encostou no ombro magro da senhora. “Vamos acordar, a senhora precisa comer.” — Doranice arregalou os olhos vermelhos, sugou as babas, que teimavam em cair e espichou o cabelo, olhou para a figura em pé ao seu lado, apertou os olhos em um olhar quase mortal. “Desculpe acordar a senhora, mas o almoço está quase pronto. Vou ajeitando a mesa enquanto a senhora levanta, tá?” — Luzia tinha uma voz macia. Doranice não disse palavra alguma, resmungou e rolou de lado para poder se levantar.
Mesa posta para as duas, o cheiro de feijão queimado era o convidado especial, Luzia foi servir Doranice, que soltou entre dentes.
— Não quero feijão queimado.
— Nem dá pra sentir o gosto Dona Doranice, tirei a tempo de não amargar. — Luzia ficou sem ouvir resposta.
— A senhora deve estar sentindo falta dos seus alunos, né?
— Uhum. — E como sentia, sentia tanto que andava sem rumo na vida nesses últimos meses, antes tinha ocupação, agora, solidão.
— Mas logo melhora Dona Doranice, a senhora vai ver. Luzia estava empenhada em sua empreitada de ouvir outra voz que não a sua.
— Luzia, não me entenda mal, mas não gosto de conversa fiada. — Mentira, adorava conversar com os alunos, com os pais dos alunos, com os netos, bisnetos e até com o porteiro do prédio.
— Desculpa Dona Doranice, só fico curiosa.
— A curiosidade matou o gato, Luzia. — Doranice deu por encerrado o almoço, mal comeu e saiu batendo a bengala.
O sentimento de derrota tomou conta de Luzia, que ficou ali, mais uma vez, sentada, sozinha, engasgada com as palavras. Naquele mesmo dia, na parte da tarde as horas pareciam mais arrastadas do que de costume, Luzia areou as panelas, limpou os banheiros, arrumou a cama do cochilo da tarde da senhora, temperou os bifes para o jantar, fez um feijão fresquinho, fez até bolo para o café de Doranice, e o relógio teimava em dizer que ainda eram quatro e meia da tarde. Luzia tinha tomado uma decisão, não ia falar mais nada, se era assim que Doranice preferia, assim ia ser, foi para seu quartinho onde mal cabia ela toda, onde a falta de janela não a deixava ver o mundo, sentou em sua cama. Desde os catorze anos era assim, dormia onde sonhava em ter um quarto onde coubesse muito mais do que ela toda.
A noitinha chegou trazendo um jantar diferente, um jantar de um prato só, um garfo só, uma Doranice só, depois do fiasco da conversa no almoço Luzia não queria mais arriscar puxar assunto e nem deixar a idosa sem comer. Doranice estranhou, mas sentou e comeu seu bife temperado, seu feijão fresquinho e seu arroz soltinho, finalmente paz, mas o que será que aquela criatura tinha que estava no quarto e não sentada à mesa?
Assim, foram passando os dias, com Luzia em um canto e Doranice no outro, nada de perguntas, nem assuntos, nem dois pratos à mesa, tudo na mais aparente harmonia, mas Doranice foi ficando encafifada, afinal o filho pagava a mulher para cuidar dela, não para ficar trancada no quarto na hora de comer, coisa estranha. E mais pratos sozinhos vieram, até que…
— Dona Doranice, o almoço tá servido. — Luzia chamou da porta da cozinha e ao ver a senhora se levantar do sofá já ia saindo para o quarto.
— Luzia, você já comeu? — Resmungou Doranice.
— Inda não, eu como depois. Se precisar de alguma coisa é só chamar. E foi entrando em sua pequena caixinha.
— Mas o que deu em você agora? Não quer mais comer comigo por quê? — Doranice encaixou as mãos retorcidas na cintura.
— É para a senhora poder comer tranquila. — Luzia se perguntava se algo na vida fazia Dona Doranice feliz.
— Ah! Senta aí e para de palhaçada. — Doranice se acomodou na cadeira com a dificuldade de sempre.
Luzia pegou um prato no armário, sentou ao lado da senhora, serviu as duas, e ficou calada, definitivamente não entendia aquela velha. O silêncio era tanto que fazia ecoar o tic-tac do imenso relógio da sala, era uma sinfonia silenciosa, os copos batendo na mesa, os talheres roçando nos pratos, o sino dos ventos na varanda, tudo muito bem orquestrado para fazer daquele momento o mais constrangedor possível enquanto as duas mantinhas olhos grudados nos pratos.
— Até quando será que isso tudo vai durar? — Disse Doranice, com os olhos fixos no curto horizonte da cozinha, teve a impressão de ter pensado em voz alta.
Luzia mal podia acreditar, Doranice estava falando, seu coração se encheu de esperança, finalmente podia usar suas mandíbulas para algo mais do que comer.
— Vai saber Dona Doranice. Nunca que eu vi nada assim antes. — Falou devagar e pausado, não queria assustar a mulher, vai que ela fica nervosa de novo e para de falar.
— Eu não aguento mais tudo isso, não aguento mais! — Os olhos de Doranice se encheram de lágrimas.
— Ô tadinha, fica assim não, logo passa, a senhora vai ver. — Luzia pegou um guardanapo, esticou a mão em direção a Doranice, a vontade era de abraçar a mulher, achou melhor se conter.
— Eu acho que a senhora precisa de um café fresquinho e um bolo pra acompanhar, quer? — Foi logo se levantando para colocar a água para ferver.
Doranice se recompôs, tomaram o café em silêncio, mas já tinham feito um progresso imenso. Agora havia uma ponte, criada com meia dúzia de palavras, pequena e frágil, passados três silenciosos meses finalmente tinham uma ponte... tic-tac… tic-tac…
3
Luzia abriu a tampa do teclado do piano com extremo cuidado, passou o espanador com a delicadeza enérgica que lhe era característica. Por um momento se viu com os olhos parados, fixos nas teclas, tão bonitas, amareladas pelo tempo, mas ainda reluzentes, como seria apertar uma delas, não se conteve, seu dedo foi mais rápido que a razão, o som reverberou em cada canto do apartamento. “Dona Doranice vai me matar.” — Ao olhar em volta, Luzia sentiu um arrepio na espinha, seus olhos se cruzaram com os de Doranice sentada na poltrona, bem atrás dela. Doranice, teve um lampejo de seus dias cheios de música. Foi então que uma ideia pipocou em sua mente, como não tinha pensado nisso antes.
— Aperte de novo Luzia. — Disse Doranice em um tom sereno, sem mover um músculo sequer.
Sem entender bem, Luzia simplesmente obedeceu.
— Você sabe o nome dessa nota?
— Sei não, senhora. — Luzia estava confusa. Apertou as mãos, sentia um misto de medo e curiosidade.
— Sente-se no banco do piano. — Doranice apoiou o peso do corpo no braço da poltrona e com esforço levantou o corpo rígido e curvado e se moveu com passos curtos em direção a Luzia.
— Sentar? Mas tenho muita coisa pra fazer Dona Doranice. — Luzia apontava para todos os cantos da sala com o espanador.
— Senta logo, depois você cuida da casa. — Doranice estava em pé ao lado do piano e foi tão enfática que Luzia não ousou desobedecer.
Os dedos calejados de Luzia, finalmente foram descobrindo como era tocar nas teclas, e Doranice, de olhos fechados, pode novamente ouvir a voz do piano invadindo seus ouvidos.
O passar do tempo não foi bom com o apartamento, que começou a sentir falta de Luzia, a poeira acumulada sobre os móveis gritava em alto e bom som que a vida havia tomado outro rumo, o aspirador solitário na despensa só cantava aos sábados, o espanador só voava quando o tempo permitia e as janelas sempre abertas deixavam entrar o prenúncio da primavera. Em certo momento Doranice perdeu a conta dos mortos, a televisão foi esquecida no canto da sala, “Melhor não saber dessas coisas ruins”. E assim foram revivendo, uma errando e a outra ensinando, uma ouvindo e outra tocando. Essa nova intimidade foi abrindo caminho para quem, no intervalo das “aulas” todas as histórias entaladas na garganta fossem contadas, Luzia mal podia acreditar que Dona Doranice tinha tocado para mais de mil pessoas e Doranice se espantou ao saber que Luzia havia começado a trabalhar com catorze anos. Haviam renascido, e após um ano de silêncio, descobriram que para transformar um mundo diminuto em um grande universo bastava falar.
Excelente! Gostei muito do texto! A forma como a autora vai usando as referências musicais é muito divertida. A rabugentice de Dona Doranice vai sendo ressignifcada. Excelente! Continue a escrever!